A gente que é mãe tá sempre achando que o filho é um gênio,
super inteligente e o mais esperto da rodinha. Abeille nem tem dois anos, já
agradece, rodopia, bate palminhas, manja inglês, espanhol... Por isso, quando
me avisaram na creche que iam entregar o “relatório de desenvolvimento”, é óbvio que eu estava esperando um diagnóstico
de criança prodígio, super dotada com habilidades muito acima das demais
crianças de sua idade. Abri o papel cheia de expectativas, mas ali não
encontrei nada além do conceito “muito bom”para atividades simples como
comer bem, socializar bem, dormir bem e obedecer comandos simples. (Simples? Eu
achei que a menina já trocava altas idéias!) Dentre as marcações, todas
na primeira coluna, indicando boa pontuação, vi um x lá na terceira coluna (indicativo de 'regular'), em
algum dos tópicos. Gelei! Como assim, a Abeille não tinha nota 10 em todos os
quesitos? Corri com os olhos para ver onde meu geniozinho falhava: Assiduidade:
regular. Ah, tudo bem! Eu sei que ela falta muito. É reflexo da nossa escolha para garantir que Abeille fique conosco em casa até
ficar maiorzinha. A creche é só para me dar um alívio no dia a dia, pois aqui
não temos família por perto para ajudar.
Li os comentários, ávida por notas de louvor pelo bom
comportamento da menina, mas nada parecia superar as expectativas. Boa
coordenação, organização sensório-motor-espacial-temporaleetceteraetal e no
final, uma registro em destaque!
A aluna falta muito às
aulas, o que atrapalha o desenvolvimento.
Quê???? Atrapalha o que? Peraí, gente, tem alguma coisa
muito errada aqui. Como é que uma escolinha, com um parquinho de cimento, um
refeitório coberto e uma sala com dez crianças dando cabeçada vem me dizer que minha
filha desenvolve mais ali dentro do que comigo, com as minhas referências,
minhas escolhas, minha família? Ela escuta violão na escola? Sapo cururu? Pois
eu a levo a festivais de jazz, a vó passa tardes com ela no piano, o pai leva
pra tocar o tambor na capoeira. Ela assiste a vídeos educativos? Eu a levo a museus, peças teatrais, busco animações da França, de Moçambique, do interior do
Brasil. Ela tem aulinhas de inglês? Se faltou duas semanas seguidas, foi porque
a levei para comer empanadas na argentina e aprender a dizer Hola e Gracias por
osmose e convivência. A escola tem a semana do folclore? Show, acho dez a gente
valorizar a cultura nacional. Mas ela também aprendeu as lendas no interior do
Uruguay, frequentando uma escolinha pública e convivendo com as crianças de lá.
Abeille está se desenvolvendo perfeitamente para uma criança
de um ano e meio. Vontade de levar este texto aqui, em forma de cartinha, na direção da escola, de
jogar na mesa do psipedagogo que acha que sabe mais de desenvolvimento infantil
do que nós, mamães dedicadas. Eu que me preocupo em mandar bilhetinhos para que
não esqueçam de dar bastante água à menina, que mando lanchinhos naturais para
que ela não coma os industrializados oferecidos na escola, eu que evito levá-la
àquele espaço confinado em dias de chuva, porque tenho consciência de que em
ambientes fechados os indivíduos aglomerados podem facilmente adoecer e passar
dias na cama sem ver o sol, o mar e os passarinhos. Ora, abram a mente,
queridos! A minha bebê ainda não tem nem dois anos e não vou sujeitá-la tão
cedo às regras escolares.
Fosse eu impetuosa e ousada o suficiente para levar
esta cartinha (mas não o farei, pois prefiro manter a boa convivência numa das raras creches decentes), terminaria
citando Michael Foucault em Vigiar e Punir:
O corpo humano entra numa maquinaria de poder
que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. A disciplina fabrica assim
corpos submissos e exercitados, os chamados "corpos dóceis".