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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Desenvolvendo corpos dóceis desde a creche

A gente que é mãe tá sempre achando que o filho é um gênio, super inteligente e o mais esperto da rodinha. Abeille nem tem dois anos, já agradece, rodopia, bate palminhas, manja inglês, espanhol... Por isso, quando me avisaram na creche que iam entregar o “relatório de desenvolvimento”, é óbvio que eu estava esperando um diagnóstico de criança prodígio, super dotada com habilidades muito acima das demais crianças de sua idade. Abri o papel cheia de expectativas, mas ali não encontrei nada além do conceito “muito bom”para atividades simples como comer bem, socializar bem, dormir bem e obedecer comandos simples. (Simples? Eu achei que a menina já trocava altas idéias!) Dentre as marcações, todas na primeira coluna, indicando boa pontuação, vi um x lá na terceira coluna (indicativo de 'regular'), em algum dos tópicos. Gelei! Como assim, a Abeille não tinha nota 10 em todos os quesitos? Corri com os olhos para ver onde meu geniozinho falhava: Assiduidade: regular. Ah, tudo bem! Eu sei que ela falta muito. É reflexo da nossa escolha para garantir que Abeille fique conosco em casa até ficar maiorzinha. A creche é só para me dar um alívio no dia a dia, pois aqui não temos família por perto para ajudar.
Li os comentários, ávida por notas de louvor pelo bom comportamento da menina, mas nada parecia superar as expectativas. Boa coordenação, organização sensório-motor-espacial-temporaleetceteraetal e no final, uma registro em destaque!
A aluna falta muito às aulas, o que atrapalha o desenvolvimento.
Quê???? Atrapalha o que? Peraí, gente, tem alguma coisa muito errada aqui. Como é que uma escolinha, com um parquinho de cimento, um refeitório coberto e uma sala com dez crianças dando cabeçada vem me dizer que minha filha desenvolve mais ali dentro do que comigo, com as minhas referências, minhas escolhas, minha família? Ela escuta violão na escola? Sapo cururu? Pois eu a levo a festivais de jazz, a vó passa tardes com ela no piano, o pai leva pra tocar o tambor na capoeira. Ela assiste a vídeos educativos? Eu a levo a museus, peças teatrais, busco animações da França, de Moçambique, do interior do Brasil. Ela tem aulinhas de inglês? Se faltou duas semanas seguidas, foi porque a levei para comer empanadas na argentina e aprender a dizer Hola e Gracias por osmose e convivência. A escola tem a semana do folclore? Show, acho dez a gente valorizar a cultura nacional. Mas ela também aprendeu as lendas no interior do Uruguay, frequentando uma escolinha pública e convivendo com as crianças de lá.
Abeille está se desenvolvendo perfeitamente para uma criança de um ano e meio. Vontade de levar este texto aqui, em forma de cartinha, na direção da escola, de jogar na mesa do psipedagogo que acha que sabe mais de desenvolvimento infantil do que nós, mamães dedicadas. Eu que me preocupo em mandar bilhetinhos para que não esqueçam de dar bastante água à menina, que mando lanchinhos naturais para que ela não coma os industrializados oferecidos na escola, eu que evito levá-la àquele espaço confinado em dias de chuva, porque tenho consciência de que em ambientes fechados os indivíduos aglomerados podem facilmente adoecer e passar dias na cama sem ver o sol, o mar e os passarinhos. Ora, abram a mente, queridos! A minha bebê ainda não tem nem dois anos e não vou sujeitá-la tão cedo às regras escolares.
Fosse eu impetuosa e ousada o suficiente para levar esta cartinha (mas não o farei, pois prefiro manter a boa convivência numa das raras creches decentes), terminaria citando Michael Foucault em Vigiar e Punir:

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, os chamados "corpos dóceis".

2 comentários:

  1. Concordo contigo em numero, genero e grau! E adorei este seu post!
    Beijos, Rita

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  2. Oi,
    Post muito bacana, que leva a uma reflexão muito válida.
    Curti muito!
    Boa semana para você!
    Beijos
    Chris
    http://inventandocomamamae.blogspot.com.br

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